Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG: exemplo inspirador. Por frei Gilvander Moreira[1]
Celebração e Festa da conquista da 1a Comunidade Quilombola de Betim, MG: a Comunidade Quilombola Família Araújo, dia 19/03/23. Fotos: Alenice BaetaDia 19 de março de 2023, dia de
São José, entrará para a história como um dia histórico na Comunidade
Quilombola Família Araújo, de Betim, MG, situada à Rua Hum, 77, no Jardim
Brasília, atrás do Hospital Regional do SUS. Reunimos mais de 100 lideranças
populares para celebrarmos e festejarmos a conquista da 1ª Comunidade
Quilombola da cidade de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG,
que se apresentou como Comunidade Quilombola e já conquistou o Certificado de autorreconhecimento
expedido pela Fundação Cultural Palmares (FCP) do Governo Federal.
Na parte da manhã realizamos uma
inesquecível celebração de ação de graças interreligiosa ao Deus da vida, aos
ancestrais e a todos os bons espíritos que têm guiado nossa luta pelo
território. A palavra foi partilhada e várias pessoas do Quilombo Família Araújo
e muitas da Rede de Apoio resgataram a maravilha que está sendo a conquista do
território, exorcizando a brutal ameaça de despejo suportada pela Comunidade
durante os últimos anos. Alegria irradiava em todos os rostos. A fraternidade
fluía. Todos/as irmanados/as na luta pelos direitos quilombolas. Foi servida
uma saborosa feijoada no almoço comunitário preparado em mutirão, a partir da
receita da matriarca Dona Zulmira. Na parte da tarde uma vibrante roda de samba
embalou todos/as que festejavam. Houve também um momento solene em que três
lideranças das Comunidades Quilombolas de Belo Horizonte (Quilombo Mangueiras,
Quilombo Souza e Quilombo Manzo) entregaram “oficialmente” à Comunidade o
Certificado de autodefinição expedido pela Fundação Cultural Palmares (FCP),
reconhecendo a Comunidade Tradicional como Quilombola. “Quilombo Reconhece Quilombo!”
Este lema proporcionou a todos/as presentes uma mística libertadora com
partilha de palavra, gestos, sabores e cânticos quilombolas.
Há quase 40 anos, um ex-prefeito
de Betim, autorizou verbalmente o sr. Zé Preto a construir uma humilde casa no
terreno, que era ermo e longe do centro da cidade. Entretanto, nos últimos 40
anos, a cidade foi se expandindo e a região se tornou muito valorizada pelo
mercado imobiliário. O Hospital Regional do SUS[2] foi
construído ao lado da Comunidade e a pressão dos especuladores imobiliários tem
crescido de forma vertiginosa. Com isso, nos últimos cinco anos, a “Família
Araújo” passou por uma brutal “sexta-feira da paixão”, pois o atual prefeito de
Betim, Vitório Mediolli, que governa para atender os interesses dos empresários,
subjugando o povo empobrecido cada vez mais, entrou com um processo de
reintegração de posse que, em meados do ano de 2022, tinha já transitado em
julgado com uma decisão absolutamente inconstitucional e injusta, inclusive com
anuência do Ministério Público de Minas Gerais. Ao lado da casa da matriarca
dona Zulmira e do patriarca Zé Preto, os filhos e filhas construíram outras
seis casas dignas e adequadas para morar, com preocupação ecológica. Quintais
bem cuidados, com plantações de árvores frutíferas, hortaliças, piscicultura e
preservam há 40 anos a nascente de onde brota sagrada água, fonte de vida.
As sete famílias Araújo, hoje,
compondo a Comunidade Quilombola Família Araújo, aflitas com a pressão infernal
pelo despejo feita pela prefeitura de Betim, que insistia diariamente para eles
saírem das casas, com ameaças de que os tratores poderiam chegar a qualquer
momento para demolir as casas, buscaram socorro na vizinha Comunidade do Beco
Fagundes, no Jardim Teresópolis, onde estávamos em uma grande Rede de Apoio
resistindo às investidas brutais também do prefeito Medioli para demolir mais
de 100 moradias, jogar as famílias na rua, para construir shopping, teleférico
e cascata de água artificial, ou seja, roubar o território e as moradias das
famílias humildes para repassar o terreno para empresários lucrarem.
Inadmissível aceitar uma violência como esta.
Ao ver sete famílias, todos
membros negros, morando em sete casas lado
a lado, com quintais produtivos e puxar a história da família, foi fácil
concluir e dizer que estávamos diante de uma Comunidade Quilombola típica e tradicional,
mas que não tinha a informação sobre seus direitos e que, portanto, ainda não
tinha se autodeclarado como Comunidade Quilombola Tradicional, como lhe era de
direito. Os advogados populares Dr. Ailton Matias e Dr. Edson Soró e nós da
Rede de Apoio identificamos um “fato novo” que possibilitou superar a decisão
do Tribunal de (in)Justiça de Minas Gerais que já havia transitado em julgado.
A comunidade estava sofrendo
cruel processo de violação em seus direitos mais profundos, tendo a sua memória
ancestral e a sua história invizibilizadas e apagadas com este injusto processo
de despejo e de desterritorialização. Chamamos, assim, a historiadora Ana
Cláudia Gomes e a Patrícia Brito, que, com experiência na defesa dos bens
culturais e patrimoniais históricos e arqueológicos, e iniciamos uma série de
reuniões e estudos que desaguou em um Documento técnico com mais de 100 páginas
em que são demonstradas todas as características de uma Comunidade Quilombola.
Em seguida aconteceu Assembleia
na qual a Comunidade se autodeclarou na presença do advogado da Federação
Quilombola de Minas Gerais N’Golo, Dr. Matheus Mendonça. Reuniões com a Defensoria
Pública de Minas (DPE-MG), a Defensoria Pública da União (DPU) e com o
Ministério Público Federal (MPF) e reivindicação à Fundação Cultural Palmares (FCP)
foi o caminho trilhado para conquistarmos a Certificação da Fundação Palmares.
Informamos ao juiz de 1ª instância, que tinha determinado o despejo, e, diante
da autodeclaração da “Família Araújo” como Comunidade Quilombola, imediatamente
ele abriu mão do processo, pois tinha se tornado “incompetente juridicamente” e
remeteu os autos à Justiça Federal, que agora terá que esperar o INCRA[3] titular
a comunidade. O Quilombo Araújo poderá inclusive requerer indenização por danos
morais e materiais, porque o terror feito pela prefeitura de Betim para
despejá-los levou a enormes prejuízos materiais e morais.
Na
luta coletiva conquistamos judicialmente, dia 5 de maio de 2022, a suspensão do
despejo e da demolição das casas da COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA FAMÍLIA
ARAÚJO. Conquistamos também o envio dos autos (processo) para a JUSTIÇA
FEDERAL, a partir da Ação CIVIL COLETIVA - AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE - da
Defensoria Pública de MG, da lavra da Dra. Ana Cláudia Alexandre, defensora
pública da área de Conflitos Agrários e socioambientais, que peticionou
alegando que “a área de 1.851,02m² se trata de área ocupada por Comunidade
Tradicional Quilombola. Exigimos o procedimento administrativo de REURBs.”
Escreveu o juiz: “trata-se de ação em que
discutido se a área cuja reintegração de posse é pretendida constituiria
comunidade quilombola, portanto, afeta a competência da JUSTIÇA FEDERAL. O
Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou que o julgamento de conflitos
sobre posse de terra que envolvam comunidades quilombolas cabe à Justiça Federal.
Ressoa evidente que as demandas judiciais as quais envolvam a posse dessas
áreas repercutem, de todo o modo, no processo demarcatório de responsabilidade
da autarquia federal agrária. Logo é inarredável o interesse federal em tais
demandas, razão pela qual deve ser fixada a competência da Justiça Federal para
o seu processamento e julgamento, consoante o art. 109, I, da Constituição
Federal. Declino da competência para o conhecimento, processo e julgamento do
presente feito para a SUBSECÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL DE CONTAGEM/MG, para onde
determino redistribuição do processo, em caráter de urgência. E que a União
seja arrolada no polo passivo do processo.”
O
processo judicial que autorizava o Município de Betim a despejar e demolir as
casas da Comunidade Quilombola Família Araújo não levou em consideração o
caráter coletivo do litigio, nem a condição de pessoas vulneráveis envolvidas –
crianças, adolescentes e idosos - o que torna nulo todo o processo, vez que em
nenhum momento a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais foi intimada para
atuar no processo, conforme determina a Lei. A decisão de mandar despejar e
demolir as casas foi, ainda, proferida sem serem apreciadas provas fundamentais
que os membros da Comunidade Quilombola Família Araújo somente obtiveram após o
“trânsito em julgado” do processo originário, tais como: a) Termo de doação da
área entregue à Família Araújo no ano 2000 pelo então prefeito da cidade Jésus
Lima; b) Processo Administrativo, originário do ano de 2002 e não finalizado,
que buscava o reassentamento prévio de todas as famílias da comunidade; c) a
autodeclaração enquanto Comunidade Quilombola Família Araújo realizada em
fevereiro de 2022.
Gratidão
a todos/as que estão se somando nesta luta justa, legítima e necessária. Com
luta e com garra conquistamos direitos. Só perde quem não luta de forma
coletiva por direitos. Quem luta coletivamente conquista direitos. Esta vitória
da Comunidade Quilombola Araújo, de Betim, MG, gera esperança para muitas
outras Comunidades injustiçadas no campo e na cidade e encorajará muita gente a
seguir na luta por direitos e por tudo o que é justo.
Comunidade Quilombola Família Araújo, um exemplo inspirador, em Betim, MG.
21/03/2023
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - 1ª Comunidade Quilombola
de Betim, MG: Quilombo Família Araújo: exemplo inspirador. Fé na luta!
2 - Viva a cultura popular!1ª
Comunidade Quilombola de Betim, MG: Quilombo Família Araújo. Que beleza!
3 - Despejo por especulação
imobiliária? “Não serão despejados!” Quilombo Araújo, Betim, MG. Vídeo 3
4 - “Despejar Quilombo Araújo
p doar terreno p empresário é racismo” Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 2
5 - “Éramos quilombolas e não
sabíamos." Ao resgatar nossa história, Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 10
6 - “Já moramos até em
cemitério. Já cozinhei em empresa do Medioli". Quilombo Araújo, Betim/MG.
Vídeo 9
7 - Muitas ilegalidades da
decisão judicial pró despejo do Quilombo Família Araújo, de Betim/MG. Vídeo 8
8 - Apaixonante HISTÓRIA do
Quilombo Araújo, Betim/MG. Por Historiadora Ana Cláudia Gomes/UFMG. Vídeo 6
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em
Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel
em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e
Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação
Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Sistema Único de Saúde.
[3] Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária.